acto nocturno de conhecer a cidade
era uma vez uma menina que dizia tolices. uma menina que não sabia calar e não tinha medo de dizer coisas. coisas que às vezes as pessoas não falam, estás a ver? essa menina perdia frequentemente a noção dos limites e era extremamente mimada. lá dava as voltas que fosse para ter aquilo que queria ao ponto de às vezes, com tanta volta, se esquecer porque é que queria as coisas. e ela gostava de coisas bonitas. vivia com a cabeça no ar. esquecia-se de coisas importantes. era desarrumada. inconveniente. acreditava em coisas idiotas, que já ninguém nos dias de hoje acredita. e não falo aqui em unicórnios nem em potes de ouro no fundo do arco-iris, nada disso. acreditava que podia massacrar o corpo indefinidamente. que as pessoas ao fim e ao cabo iriam acabar por se respeitar nas diferenças e coisas do género. essa menina, na minha opinião sincera, era um bocado otária.
era uma vez uma mulher que dizia tolices. uma mulher que sabia falar de muita coisa e usar palavras dificeis. as pessoas achavam muitas vezes que estava a mentir, mas acabavam por confiar nela. essa mulher lá arranjava maneira de se convencer de determinadas coisas, através de complicadissimos processos mentais, de modo a que a vidinha lhe corresse de uma maneira mais ou menos fácil. coisas que todos nós sabemos fazer: gostar mais de umas pessoas do que outras, dormir e comer quando lhe apetecia, esse tipo de cenas. mas às vezes as coisas ficavam meio vagas e ambíguas. a realidade e a ficção confundiam-se. o corpo pedia mais e mais insanidade. o corpo pedia e ela dava-lhe. tudo o que pedisse. às vezes fechava-se e às vezes abria-se. uma coisa estranha que se sucedia e nem sequer dava muito bem para prever ou condicionar. era como se não tivesse planos ou não assim. como se não soubesse o que era, o que seria e qual o seu lugar no mundo. um bocado só, devo admitir. sempre que dava por mim a pensar muito nela, nunca conseguia perceber nada. só percebia que explorava o mundo incansavelmente. que o seu corpo doía muito e que chorava de vez em quando.
era uma vez uma menina que se cruzava com uma mulher todos os dias. olhavam uma para a outra de uma maneira estranha, com alguma desconfiança. nunca se falaram, creio, mas conheciam as duas aquele caminho que precorriam inversamente até se cruzarem. também não o conheciam muito bem, mas recusavam-se ambas a pedir qualquer tipo de direcção. quando se perdiam, invariavelmente cruzavam-se. como se a cidade fosse sempre redonda.