Monstro
Exactamente igual à sua imagem no espelho; tece com mãos delicadas a sua armadura, as mesmas mãos com que amordaça a vítima, as mesmas mãos com que lhe retira o ar do corpo; exactamente igual ao seu carcereiro; inventa com jogos meticulosos a sua rotina, os mesmos jogos que ensina às crianças, os mesmos jogos que nunca perdeu; exactamente igual às suas palavras; canta com voz suave a sua fragilidade, a mesma voz com que nega tudo, a mesma voz com que delata nomes e datas, a mesma voz que se cala naquela altura de grito; exactamente igual ao seu passado; embala com os braços fortes a sua maldição, os seus pactos com os fantasmas, as suas promessas de imortalidade e justiça, os mesmos braços que seguram o suicida na ponte, o trapezista nas alturas, a espingarda no pelotão de fuzilamento; exactamente igual ao sabor do sangue; recolhe com devoção o seu salário, devora com suavidade a sua própria cauda, entrega com paixão a sua mortalha ao coveiro; exactamente igual à sua morte, o monstro brinca com moedas e paus, corações e taças, ignorando que dentro de si revolve mais uma vez o mundo.