once
Basta saborear a terra. não basta enganá-la uma vez e outra mais. não chega tomá-la à força nem forçar o passo. querer que se arraste em barro pelas mãos e pela cara e tornar-me fogo e forma. envergá-la no copo e estendê-la às ondas. montar sobre ela uma luz e desviar os fados. e restar as cinzas em qualquer lado, porque restam sempre cinzas da viagem, da linguagem e do fogão.
Saborear o gesto. do degrau que se move debaixo do pé, da mão que foge com o cigarro e da boca que foge do fumo, do entalar o lençol novo e do encenar o adeus, do encetar o maço, do estalar a rolha. mesmo com a boca morta, porque ela morre sempre que o sabor se esquece.
Daria a mão à saudade mas já me custa parar às portas, e então sigo, sem memória. Vejo-me na imaginação turva do caminho, inventando canções nas encruzilhadas, das quais me esqueço sempre da letra, mas cuja melodia não cessa, como uma sombra. procuro o cheiro do medo por entre as esquinas, já com o saco aberto numa mão e a mordaça na outra, à espera de um passo em falso para a gaiola branca. a memória que me faz má caçadora também me faz má presa. e deixo as palavras soltas nas soleiras das portas e sigo não lembrando os poemas, mas com o coração cheio de música.