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viagem
Tenho a vida que quero, que quis. Nómada e sem medo disso. Horas e horas a viajar, à espera em plataformas e linhas. Há muita eloquência nestes espaços de pessoas em trânsito. É um espaço de solidão e de encontro como são os espaços de quem vai e vem de qualquer coisa. Há sempre uma mensagem escondida nestes sítios e esperar torna-se um puzzle, um jogo de epifanias ou da mais pura observação. Informação oculta sobre o mundo, subliminar, que fica em suspenso algures no esquecimento a temperar o inconsciente. É uma espécie de sabedoria silenciosa e sem teoria alguma que não o mundo e os mundos que o habitam. É por isso que gosto de transitar. Trans-sito, entre sítios (eu sabia q as aulas de latim em que eu dormia me haviam de ajudar…sabedoria subliminar que me ajuda a entender o mundo). Entre sítios diferentes, norte sul este oeste, circulo, espiral, dentro fora, lugar, carruagem: origem destino----- um espaço de criação, um sistema solar. Enquanto viajo no mapa real, junto os pontos com uma caneta dentro da minha cabeça, traçando o meu caminho noutro mapa, um outro desenho com pouco rigor e técnica, mas muita arte.
Tenho a vida que quero, portátil no colo, (esta caixa negra, cofre forte, amigo intimo, mascote) cigarros, uma bebida fresca, música e quando sair de dentro da carruagem e do lugar, chegarei a um outro sítio, um outro local, com um sentimento de chegada, destino. Lá, há parte de mim que é diferente, anónima e sempre uma estrangeira, sem nome, tentando sempre transmitir uma informação e ao mesmo tempo guardar segredo. Dentro das cidades-mente há sempre cantos secretos e lugares públicos, bancos de jardim e quartos com vista. Há também ruas escuras e muita dor solidificada em paredes lisas ou demolidas, lixo e luxo. Tenho a vida que quero: pagam-me para fazer o que gosto e não me prendem, não me controlam. Tenho tempo para ter vida. E eu dou o que sei fazer, e sei que sou afortunada. Tenho conforto e segurança material para não ter medo, sabendo que lido tão bem viver com pouco como con-viver com muito. E mesmo quando posso parar viajo e mesmo quando viajo há uma continuidade móvel, como um caleidoscópio: giro uns dias e está diferente, uma outra perspectiva, estas ligeiras, diferentes. Não é difícil imaginar que sempre que chego, chego não à mesma, mas a uma dimensão/realidade diferente. Viajo muito na minha cabeça.
Assim, tenho dúzias de números de telefone e tantos emails diferentes, pessoas com o mesmo nome de terras diferentes que se confundem. Tenho médico em Coimbra, dentista em Portimão, farmacêutico em Lisboa. Amigos e camaradas em vários sítios da Europa e do mundo, também eles sempre em trânsito. Mais, conheço pessoas todos os dias e tendo a aproximar-me e aproxima-las. Acho sempre que a vida é curta e o mundo é tão grande…e também tão pequeno. Tenho várias mochilas com imenso espaço e coisas espalhadas: 3 escovas de dentes, roupa interior, calças, malas, camisolas e casacos em vários sítios. Tenho máquina de lavar e secar em Coimbra, o ferro em Lisboa e a costureira no Algarve.
E as coisas compõem-se no fim. Há um sentimento de fim de história, pequenos gestos, mensagens e músicas (pormenores) que ficam associados às vitórias e às derrotas, às alegrias e às tristezas, ás noites, aos dias, às madrugadas, ao acordar e ao adormecer, às casas e às ruas. Às partidas e às chegadas Não me lembro das pessoas na plataforma mas lembrar-me-ei de hoje. Agora estou a ouvir um álbum que tem tudo a ver com esta viagem em particular, a metáfora que se encaixa na perfeição entre os sítios dentro e fora de mim, e o movimento entre eles. Outras músicas e outros filmes terão feito um pequenino ou grande golpe na casca da árvore, sem datas ou nomes, mas eventos memoráveis de viagem. A minha vida tem uma banda sonora. A minha vida tem memória sensorial acesa. Prendo-me pelo toque, pela música, pelo cheiro, pelo sabor, pelas cores e pelas imagens. Continuo a dizer que o melhor do mundo é a arte, a janela do comboio da mente, do quarto alugado na mente, a vista da varanda da mente, o telescópio e o microscópio da mente, o útero e o recto da mente. E do corpo, e do corpo. Mantém-me saudável, a arte. Mantém-me livre. Há arte em todo o lado do mundo. Há pessoas na arte. Posso transporta-la na mochila, no computador, nos cds, nos livros. Não pesa tanto como os objectos, as fotografias.
poema do adormecer
abro as mãos abro
as horas contadas pelos dedos mortos e tanto tanto
silêncio dentro da mala aberta como um crâneo limpo
nesta ninharia de bocejo a hora tarde tarda
nesta ínfima bondade de boca ao ar fresco morno
um beijo branco
um pequeno gesto para lembrar o universo
o corpo em concha supernova
em pulsação grave junto ao peito descrendo o sonho
em leque
uma curva que se concentra em dado ponto solar
neste tempo neste pequeno espaço
de tempo
[para os românticos incuráveis e para quem conhece as várias versões desta modinha (muito bem esgalhada também pelos Nouvelle Vague)]
In A Manner Of Speaking
In a manner of speaking
Poema do acordar
sinto menos alma na carne. (já não acreditam nas minhas palavras.) A presença é inútil e feita de um só olhar ambíguo. – uma viragem ao auge da borboleta. cem cigarros. - preciso de um desejo já não preciso de muitos. – demasiada a janela e a rua e as pessoas na rua e as pessoas dentro das pessoas na rua. - sinto as marcas na pele e a boca seca (e quero-te agora. quero-te. a tua boca em todo o lado, o cheiro da tua pele, a pressa toda do dia na pressão dos corpos) - tenho sede, dói-me sempre qualquer coisa. -botão para retirar as horas de dentro das horas das pessoas na rua. - quero a indiferença do desespero da mesma forma que eu não a sinto. mais uma. eu não me importo. preciso disso. – a diferença do desespero marinado. – fresco e quente na dobra do tecido entre as pernas. sabemo-nos. mais. – uma flor que tem sede. – não saber as semanas trescompassadas. –que dia é hoje? dentro do dia que pesa no dia das pessoas na rua.
–“ eu descobri e sei uma coisa em que podes pensar!”. (– sem escola, um furo no escuro. – nem um só miligrama de cinismo…tenho agora dezasseis anos e já sei medi-lo como razão. Como ração. ) passo como pessoa na rua cheia de horas dentro do dia que é hoje.
devolvendo-me à almofada. lado a lado a lado a lado. sem recuo breve. sem recusa.
-levanto-me.
Tar and feathers
Oculto este jogo de pesos e de coisas que se anulam: um esquema só de coisas que esbraquiçam o ser manhã e o ser que anoitece ao mesmo tempo, colando-os ao mesmo lado da folha de papel.
Uma gota escorre pela lâmina abaixo enquanto a vista aérea ignora o negrume. E continua a subir enquanto esse meio-veneno escolhe as suas próprias virtudes. E continua a descer enquanto essa meia-escama se multiplica em escada.